quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Abdicação - Fernando Pessoa

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho... eu sou um rei
que voluntariamente abandonei

O meu trono de sonhos e cansaços.

Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mão viris e calmas entreguei;
E meu cetro e coroa - eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços

Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.

Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.

O Sonho - Clarice Lispector

Sonhe com aquilo que você quer ser,
porque você possui apenas uma vida
e nela só se tem uma chance
de fazer aquilo que quer.

Tenha felicidade bastante para fazê-la doce.
Dificuldades para fazê-la forte.
Tristeza para fazê-la humana.
E esperança suficiente para fazê-la feliz. 

As pessoas mais felizes não tem as melhores coisas.
Elas sabem fazer o melhor das oportunidades
que aparecem em seus caminhos.

A felicidade aparece para aqueles que choram.
Para aqueles que se machucam
Para aqueles que buscam e tentam sempre.
E para aqueles que reconhecem
a importância das pessoas que passaram por suas vidas.

Soneto de Fidelidade - Vinicius de Moraes

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa lhe dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Devaneio

Caminhos com vários pratos de tentação
Alguns, montanha acima, outros ribanceira abaixo
Tudo depende da sina, do objetivo em questão
Se a trilha desanima, pra que ter uma razão?

A neblina esconde onde pisar
Por favor, uma luz pra me guiar
Não sei onde piso, onde ter firmeza
Onde confiar, onde ter destreza
Nos teus olhos? No teu cheiro?
Nada sólido, simples devaneio.

O vento bate barulhento
Muitos gritos e nenhum lamento
Não leva a neblina embora
A deixa em sua frieza
Da fraqueza se corrobora.

Nesta falta de visão
Quantas palavras ditas
Perderam-se no vento
Agora são malditas.

Nesta falta de visão
Quantas palavras ouvidas
Morreram, simplesmente
Agora estão apodrecidas.

domingo, 10 de novembro de 2013

Poema à Boca Fechada - José Saramago

Não direi: 
Que o silêncio me sufoca e amordaça. 
Calado estou, calado ficarei, 
Pois que a língua que falo é de outra raça. 

Palavras consumidas se acumulam, 
Se represam, cisterna de águas mortas, 
Ácidas mágoas em limos transformadas, 
Vaza de fundo em que há raízes tortas. 

Não direi: 
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem, 
Palavras que não digam quanto sei 
Neste retiro em que me não conhecem. 

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas, 
Nem só animais bóiam, mortos, medos, 
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam 
No negro poço de onde sobem dedos. 

Só direi, 
Crispadamente recolhido e mudo, 
Que quem se cala quando me calei 
Não poderá morrer sem dizer tudo.

sábado, 9 de novembro de 2013

Marcha - Cecília Meireles

As ordens da madrugada
romperam por sobre os montes:
nosso caminho se alarga
sem campos verdes nem fontes.
Apenas o sol redondo
e alguma esmola de vento
quebram as formas do sono
com a ideia do movimento.
Vamos a passo e de longe;
entre nós dois anda o mundo,
com alguns mortos pelo fundo.
As aves trazem mentiras
de países sem sofrimento.
Por mais que alargue as pupilas,
mais minha dúvida aumento.
Também não pretendo nada
senão ir andando à toa,
como um número que se arma
e em seguida se esboroa,
- e cair no mesmo poço
de inércia e de esquecimento,
onde o fim do tempo soma
pedras, águas, pensamento.
Gosto da minha palavra
pelo sabor que lhe deste:
mesmo quando é linda, amarga
como qualquer fruto agreste.
Mesmo assim amarga, é tudo
que tenho, entre o sol e o vento:
meu vestido, minha música,
meu sonho e meu alimento.
Quando penso no teu rosto,
fecho os olhos de saudade;
tenho visto muita coisa,
menos a felicidade.
Soltam-se os meus dedos ristes,
dos sonhos claros que invento.
Nem aquilo que imagino
já me dá contentamento.

Cultivo

Muito mais simples seria se pudéssemos arrancar de nós
Muito mais simples seria se eu pudesse levantar minha voz
Não escutar o som da dor, não velar por um velho sorriso
No jardim antes cultivado, ensolarado em seu todo
A erva daninha reinou e sufocou o que era belo
A flor jaz morta caída na terra, sua luz se extinguiu
Sua cor não encanta mais, sua vantagem se partiu
Muito bem vinda será uma nova temporada
Necessária após tão sádico castigo
A mesma terra, não importa
O que vale é a satisfação do abrigo
Semente nova ocupará o espaço
A mais compatível possível de se ter
De incrível encanto e grande poder
Aguardada já é pelos elementos
O que antes era belo, silêncio e solidão prosperam
Nem o Sol nem a Chuva recuperam
Pois a flor jaz morta caída na terra, sua luz se extinguiu
Sua cor não encanta mais, sua vantagem se partiu